sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Reciclemo-nos!

Às vezes eu tenho a nítida impressão de que a vida nada mais é do que uma repetição de acontecimentos, repetidos e maquiados conforme o tempo. Dos mais triviais aos mais curiosos fatos, tudo parece se reciclar ao sabor do tempo. Tudo já aconteceu antes, nada tem uma sensação pura de novidade. Novidade não existe. Tudo é um dejávu constante. Mudam os ares, trocam-se as roupas, a imagem no espelho envelhece, mas tudo gira em torno do mesmo propósito. Aliás, um despropósito, penso eu.

De pseudo-férias no Rio, de volta ao meu bom e velho subúrbio carioca, tenho a sensação de observar o cotidiano dos meus conterrâneos, como se eu estivesse perto e longe ao mesmo tempo. Perto o suficiente para escutá-los, para perceber o seu corre-corre, para apreciar a dinâmica do seu acordar e dormir, mas longe o bastante para não conseguir acompanhá-los. Reconheço na rua, adultos que um dia vi criança, com filhos e rugas de preocupação. Fico consternada com os preços altos dos produtos no mercado, que me lembro de quando ainda era uma generosa mercearia. Ando a pé com minha cachorra pelos bairros vizinhos e ainda consigo ficar consternada com o estado das calçadas, se é que podemos chamar de calçadas apenas uma “lavada” de cimento e pedra, que separa quase que inutilmente o leito da rua e o portão das casas. Quando mais generosas, estas calçadas só servem de estacionamento de carros, de alpendre para as lojinhas e para outras mil utilidades urbanas, menos para a essencial: caminhar. Generosidade urbana não existe no subúrbio carioca. Se o caro leitor quer ter o desprazer de verificar com uma boa caminhada, sugiro a Estrada do Quitungo, avenida que corta os bairros de Brás de Pina, Cordovil e Vista Alegre. É o bom e velho subúrbio, com as mesmas carências de sempre, que tenho certeza, infelizmente, vão continuar sendo as carências de amanhã, apenas recicladas.

Na esquina da minha rua, há um bar de vida efêmera. Minha mãe diz que ali está enterrada uma cabeça de burro (se o caro leitor nunca ouviu, isto é um ditado popular!) e que nada ali dá certo definitivamente. Hoje tivemos uma tão anunciada inauguração do bar, que se não me falha a memória, já havia sido inaugurado ainda este ano! Pois bem, que seja re-re-re-inauguração, mas hoje a noite foi de cantoria e movimento na minha esquina. Por ali já lanchei muitas vezes quando criança, observava os adultos na cervejinha de fim do dia, juntava moedas para comprar um pedaço da melhor torta de chocolate que já comi, reuníamos os primos em torno da minha falecida vó, para saborear uma coca gelada, ainda em garrafas de vidro de 1L, ofertada por ela quando recebia a graninha do INSS. Lembro de um jogo de futebol que assisti na TV que ficava dentro do balcão. Era aquele Brasil e Holanda, que terminou em pênaltis se eu não me engano, semifinal da Copa de 98. Eu tinha 16 anos e vi um jogo de futebol no balcão de um bar e acredito que tenha sido a única “mulher” ali, do lado de fora do balcão! Mas não era qualquer bar... Era na “lojinha”, ali eu tinha permissão para ficar.

E hoje, com outras cores, com outro nome e com outro dono, a “lojinha” como chamávamos lá nos idos dos anos 90, reabriu as portas. Prestigiei o evento, mais de longe do que de perto. Hoje eu não acho que eu tenha permissão para ficar ali. Já estou longe o bastante para não conseguir acompanhar. Prestigiei ao meu jeito, lembrando dos fatos que já vivi por ali e que naturalmente serão vividos por outros agora. A “lojinha” vai ser reciclada, mais uma vez. E duvido que seja a última. Os acontecimentos também ali serão reciclados, ainda que com tortas ruins, coca de garrafa PET e na TV o futebol da atual seleção brasileira, que consegue ser muito mais medíocre do que aquela de 98.

E assim eu sigo nesta vida de reciclagem, me esforçando para não acreditar que tudo isso é um grande caminhão de lixo, me esforçando para enxergar o propósito deste museu de falsas novidades.

“Poucas horas depois, devastado pela vigília, entrou na oficina de Aureliano e perguntou: ‘Que dia é hoje?’ Aureliano lhe respondeu que era terça-feira. ‘É o que eu pensava’, disse José Arcadio Buendía. ‘Mas de repente reparei que continua sendo segunda-feira, como ontem. Olha o céu, olha as begônias. Hoje também é segunda-feira.’ (...) No dia seguinte, quarta-feira, José Arcadio Buendía voltou à oficina. ‘Isto é uma desgraça’, disse. ‘Olha o ar, ouve o zumbido do sol, igualzinho a ontem e anteontem. Hoje também é segunda-feira.’ Na quinta-feira voltou a aparecer com um doloroso aspecto de terra arrasada. ‘A máquina do tempo estragou’, quase soluçou (...)  Passou seis horas examinando as coisas, tentando encontrar uma diferença do aspecto que tiveram no dia anterior, procurando descobrir nelas uma mudança que revelasse o transcurso do tempo. Ficou toda a noite na cama com os olhos abertos, chamando (...) todos os mortos, para que viessem compartilhar de seu desgosto. Mas ninguém acudiu. Na sexta-feira, antes que todos se levantassem,  voltou a observar a aparência da natureza, até que não teve a menor dúvida de que continuava sendo segunda-feira.”
(Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez)