sexta-feira, 28 de outubro de 2011

E a vida responde...

 - Seu José, mestre carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais,
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?
Seu José, mestre carpina,
que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal
apodrece a vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à vista?

- Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.

- Seu José, mestre carpina,
e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?
espera poder um dia
comprá-la em grandes partidas?

- Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga:
não é que espere comprar
em grosso de tais partidas.
mas o que compro a retalho
é, de qualquer forma, vida.

- Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?

(...)

- Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, Severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
Vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como há de pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina. 

(MORTE E VIDA SEVERINA, João Cabral de Melo Neto, 1954/55) 

 

(teleteatro Rede Globo, direção Walter Avancini, música Chico Buarque, 1981)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Da série “Nordestices”: Recifando!

Uma vez um colega blogueiro me disse: “Você anda pela calçada e de repente chuta uma pedra. Está ali uma crônica!” É a mais pura verdade. Quem gosta de escrever crônica (ou pseudo-crônicas, como eu denomino os meus modestos escritos) sente o exato momento em que aquele fato cotidiano, ordinário, trivial pede uma reflexão no papel. Aliás, meu pai escrevia as crônicas da “Esquina Carioca” no papel! Infelizmente não posso me dar este luxo com o meu “Entre Esquinas”. Pois eis que tenho uma “pedra chutada” há mais de três meses e preciso, pelo menos, começar a registrar aqui, por que sei que esse tema ainda vai dar muito pano pra manga.

Em junho deste ano fiz minha primeira viagem não-turística ao Nordeste: Fui a Recife, a trabalho. Foram programados 15 dias de montagem de uma exposição sobre Michelangelo no Instituto Ricardo Brennand, a qual eu coordenaria. Obviamente saí de São Paulo imaginando fins de semanas livres para ir a Olinda, Porto de Galinhas, Caruaru e por aí vai. Mas foram de fato 15 dias corridos de trabalho. Trabalhei até uma hora antes de a exposição ser inaugurada e ainda tive que voltar no espaço no dia seguinte, já com malas prontas para ir embora de Recife, para finalizar os detalhes que ficaram pra trás. E aqui o caro leitor se comove com esta menina trabalhadora e pensa: Coitadinha! E eu respondo, como nossos queridos paulistanos: Imagina!

Nestes 15 dias em Recife eu descobri como olhar pra uma cidade sem aquele olhar vislumbrado de turista. De início, não levei nenhuma câmera fotográfica. Sim, nenhum registro sequer da cidade. Também não fiz aquela costumeira busca no Google sobre os lugares imperdíveis para visitar. Tampouco perguntei a quem já tinha ido à capital pernambucana o que eu devia fazer nas horas vagas de trabalho. Em termos, posso dizer que fui de mala vazia!

Sem saber, eu já tinha uma bagagem inerente: sou filha de nordestina. Passei toda minha vida cercada de migrantes do Norte, como eles se auto-intitulam. Aprendi a gostar de pimenta, farinha, comida com caldo, feijão de tudo quanto é jeito e tudo mais que lembre o Nordeste ao caro leitor. Aprendi a ter a generosidade desse povo. Aprendi a ser “virona”, a driblar a época de vacas magras e esperar a chuva cair. Não seria nenhuma novidade me sentir em família em meio ao povo recifense, que eu nunca tinha tido contato. Mas essa ficha foi caindo aos poucos, em cada viagem de “prosa” com o taxista, no dia a dia de trabalho com a “turma” da montagem, na conversa despreocupada com algum desconhecido, no pedido do almoço com o garçom do restaurante... Ou enquanto andei sozinha pelas ruas sem ter que tirar foto cartão-postal, ou reparava na conversa alheia no ônibus... De repente eu não só estava ali naquele lugar, mas já me sentia daquele lugar.

Talvez o fato de já estar em São Paulo há quase cinco anos faça me sentir melhor em meio ao povo nordestino, mais caloroso que o paulistano, assim digamos. Talvez seja só isso. Mas acredito de verdade que não. Teve algo mais. Senti como algo me puxasse pra ficar naquele lugar, a continuar escutando o “entedesse” e o “visse” daquele sotaque cantado. Mas a montagem terminou e eu voltei pra esta nossa gélida cidade da garoa. Pois eu não precisei ficar no Nordeste para que a ficha terminasse a cair: Eu sou do Nordeste! Ok, sou um camaleão, me adapto a tudo e a todos, mas sinto uma identificação muita mais íntima quando estou perto daquele povo. Posso dizer que é uma identificação ligada ao meu passado, a um passado que eu não vivi, mas que mesmo assim me pertence. Como eu falei acima, uma bagagem inerente, uma raiz que brotou por lá há muito tempo e que deu frutos em mim.

É justamente o contrário do que eu sinto em relação ao que busco aqui em São Paulo. Aqui é uma identificação ligada ao futuro, ao que eu quero descobrir e que ninguém me apresentou ou plantou em mim. Como disse o Renato Russo: “Essa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”. Mas isso é pano para outra manga.

E como eu também disse no início dessa crônica-desabafo (está aqui uma nova categoria!), só quis aqui registrar este tema, por que certamente ele vai voltar nestas páginas. As idéias de “viagens sociológicas” pelo Nordeste já fervilham na minha mente. Inclusive já pude voltar em Recife em setembro, para a desmontagem da mesma exposição, agora com mais folga e menos preocupada. Sim, fui à Olinda e de fato é uma visita indispensável! Cabe sobre esta cidade outro texto. Posso até criar neste blog uma categoria “Nordestices”. Vejamos o que vem por aí.

Para finalizar, tive a sorte de chegar em Recife em pleno feriadão de São João. E claro que fui conferir uma festa: Quinteto Violado no centro velho de Recife, cantando o legítimo forró pé de serra! E como bem diz minha mãe: Viva Gonzagão!


(P.S: Este vídeo não foi do show que assisti. Como disse anteriormente, não fiz nenhum registro da viagem!)